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domingo, 6 de novembro de 2011

para nunca me esquecer


tem cara de menino. não conhece ainda o mundo,
e talvez por essa razão vá olhando pela janela,
com olhos prematuros, fixando as paisagens iguais,
sempre repetidas nos túneis escuros do metro.

uma parte da sua face sorri e a outra é triste. olho.
tento evitar. olham muitos curiosos. ele não vê.
o metro arrastando-se nos carris, o tempo a passar.

olho e penso que aquele miúdo é um poema vivo.
tem duas caras que não esconde, que não pode…
ainda é cedo para querer. quer perceber o mundo.

o seu pai, sentado à sua frente, tem uma só cara.
é triste. percebe os habituais olhares circundantes,
pensa que o seu filho não é um menino comum.

não é. de facto, não é.

a treva agarrada ao túnel e espelhada nos vidros,
porém, a sua face mais perto da janela sorri sempre.
a outra próxima de todos os olhos que o examinam,
das sobrancelhas que se franzem, da minha inveja,
do mundo, é triste. as suas duas faces coincidem.

como eu gostava de ter essa capacidade,
exibir a dualidade, fotografá-la e torná-la imortal.

aquele menino um dia vai crescer e vai perceber
que as pessoas com apenas uma cara, tão formal,
escondem dentro de si crianças como ele.

sorri levemente após este pensamento.
tenho esperanças de um dia o voltar o ver.

depois a luz. o metro parou. saí. ele não me viu.

escrevi este poema para eu nunca me esquecer.

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