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quarta-feira, 7 de março de 2012

deu-me na veneta construir um homizio

Fotografia: Eduardo Lima


eu já tentei ser o que me disseram que seria melhor.
eu já fiz por ver aquelas virtudes que sabemos de cor.

o mundo serpenteia-me sempre célere nas veias,
conhece todos os atalhos e meios para chegar até mim:
um lugar sombrio, escondido de qualquer verdade.

eu sei que tudo são possibilidades
e que o meu corpo treme de frio.
mas e se fingíssemos nas idades,
rasgássemos a razão e fôssemos
crianças eternas de mãos dadas
que não questionam o seu rumo?
ingénuas, elas são íntegras, opacas,
e vão ignorando este nosso fumo.

se um dia eu me construir num avião,
colar-me-ei a umas asas de papel novo,
para que o vento me pegue de feição
e me dê uma direcção rara: Moscovo.
quero apenas ser algo, um objecto,
uma tara, filha das minhas mãos incautas.
quero livrar-me por fim desse teu certo,
estar errado e nomear-me astronauta.

eu sei que sou mais do que um rio que passa
e que nem sempre olho a medo essas margens.
sei que sim, mas eu: este que ouves: sou nada.
sou apenas a personagem desta estranha canção
que fala de mim e da minha falta de sentido.

eu: este eu pode muito bem ser uma pedra,
pode ser uma lareira onde ardem poemas,
pode ser a certeza que em mim não medra,
pode ser a nascente de todos estes dilemas.

eu posso ser tudo, até uma maçã prateada,
porque sou eu quem dá forma ao meu vício
e eu nunca conheci a minha norma desejada.

enfim, deu-me na veneta construir um homizio.

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