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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A CASA DO VIOLONCELO - PRÓLOGO




Como me sinto? Como se deve sentir um morto?

Era uma tarde de Dezembro. Horas longas, frias, iam passando. Faziam-se notar no relógio, no tempo que já não era meu. No silêncio, os meus pensamentos multiplicavam-se. Unia-os o mesmo destino.

Então o meu olhar foi desviado nessa carnal direcção. Ao meu lado ela dormia. Quase que lia os seus sonhos. Estava linda. Já perdi o número de tardes em que, aqui, ao seu lado, fiquei a vê-la dormir. Quando acordou teve a consciência de que aquela foi apenas mais uma tarde de Dezembro. Antes daquela tarde, antecedida por uma qualquer manhã, passaram momentos que nos levaram até ali: aquela tarde silenciosa, perdida em Dezembro.

São agora sete horas. A minha mulher já acordou. Está a fazer o jantar. Na rua já é noite. Pela janela entram os sons da cidade: vozes de pessoas, carros apressados, lojas que se fecham. E aqui, na sala, o silêncio. E depois mais um silêncio, cortado pela chegada do João.

Chegou da escola trazido pela minha mãe, que todos os dias vai buscá-lo. A minha mãe não entra, fica apenas a ver pela porta da entrada o João correr para a minha mulher. Nesse momento vejo o rosto da minha mãe parado, como se tentasse encontrar alguma coisa, alguém. O João, como todos os dias quando chega da escola, vem cheio de histórias para contar, vê-se no brilho dos seus olhos. Tem quase sete anos, tantos como esta casa.

Mudámo-nos para cá e pouco depois ele, o nosso filho nasceu. Antes vivíamos em casa da minha mãe, que fica ao fundo da rua. Lá vive também a minha irmã, a minha querida irmã. Estávamos casados há pouco mais de um ano e foi por esta altura que decidimos mudar-nos para esta casa. Tomamos a decisão na mesma noite em que, radiante, a minha mulher me disse que estava grávida. A casa da minha mãe não é muito grande. Todos concordámos que seria o melhor. A casa onde hoje vivemos, eu não sei bem se conto, não é nossa, arrendámo-la. Mudámo-nos para cá e duas semanas depois, o João nasceu. Nasceu o nosso filho.

Desde há quase dois anos que a minha mãe não nos vem visitar. Apenas fica a olhar pela porta da entrada. Apenas fica a ver o João correr para mãe. Depois olha vagamente o interior da casa. Eu não estou. Nesse momento a minha mãe chora. Depois, depois vai embora. Volta no dia seguinte.
Como qualquer criança, o meu filho não gosta de silêncio. Corre para a mãe a contar-lhe as incidências do seu pequeno, vasto universo. Ela ouve-o como se o ouvisse realmente. Mas não ouve.

O seu pensamento está noutro lugar, distante. Mas o seu olhar fingidamente interessado e as suas perguntas desinteressadamente interessadas deixam o João feliz. Por momentos, o João fica com a certeza de que realmente falou com o dinossauro com que brincou hoje na escola, por momentos o meu João foi polícia e prendeu mil bandidos, por momentos o universo foi seu. E eu, ali tão perto, vi tudo isso.

A minha mulher sorri. Por momentos, ela fica com a certeza de que se sente feliz com a felicidade do nosso filho. Mas não sente. Depois ele corre para o seu quarto. Hoje não veio ter comigo, contar as mesmas histórias, com o mesmo olhar com que momentos antes tinha contado à sua mãe. Talvez seja por ser Dezembro.

Na sala, eu vou ficando a ver fotografias antigas, em molduras coloridas desbotadas pelo tempo: momentos felizes. Lembranças com pó, pousadas sobre os móveis antigos da sala. Momentos recordados em Dezembro.

Numa dessas fotografias, eu sou ainda jovem, sorrio ao lado dos meus pais. Eles também sorriem e, por momentos, fico com a sensação de que sempre foi assim. Numa outra, estou eu, criança. Apenas um pouco mais velho que o meu filho. Tempos de escola, em que os Dezembros eram diferentes.

Depois, escondida na última página de um álbum castanho, com manchas líquidas, está ela. Linda. Jovem. Com os seus cabelos negros subtilmente frisados, com a sua pele branca como a cal e as suas mãos delicadas pousadas sobre o colo. Com os seus olhos fundos como poços cavados na sua face bela, serena, e os seus lábios que esboçam um sorriso leve: está ela. Os meus olhos ficam presos durante algum tempo ali: naquela fotografia: até que são libertados pelo João que passa a correr para a cozinha. Pouso-a.

Hora de jantar. Novo silêncio. As pernas do João, que ainda não tocam o chão e que ele faz baloiçar alternadamente, são a única palavra. Os olhos dela estão baixos, pesados. Os meus estão perdidos, talvez ainda metidos naquela fotografia. E assim vamos comendo, ao som das palavras que as pernas baloiçantes do João vão dizendo. Passam-se minutos largos ao som daquelas palavras.

Todos terminámos de jantar e o João já foi brincar. Está neste momento num outro mundo, distante, talvez paralelo. Mais vivo. E nós, eu e ela, num tempo quase parado. Sós de tudo. Como galáxias próximas num universo morto, como barcos roubados de uma frota no porto. Passam-se minutos, horas, passa-se toda uma noite inteira. Vazia. Dispersa. Longínqua. Silenciosa.

Levanto-me ainda cedo. Ponho os pés no chão frio e caminho. O tacto dos mortos não existe e os meus passos não se ouvem. A porta do quarto do João está entreaberta. Ele dorme. Hoje dormirá até mais tarde porque é Sábado. Sigo até à varanda. O meu cão está já acordado e pede-me atenção. Faço-lhe uma festa no dorso. Só ele nota a minha presença. À minha frente a manhã é calma. A rua é pacífica. O mundo está parado. É Sábado.

Passaram-se muitos outros sábados, muitas outras manhãs, tardes e noites, muitos outros Dezembros. O João completou hoje dezoito anos. É já distante o tempo em que o meu filho me chamava para brincar, é já distante o tempo em que juntos, eu e ela, passeávamos no parque enquanto o João, que já andava muito bem para a sua idade, ficava espantado com os pombos que voavam. Ora se assustava, ora se ria. Os seus olhos eram enormes, eram dois mundos. Naquele momento éramos felizes. É tudo já tão distante.

A culpa foi minha. Silêncio. Depois, alguém, alguma voz me diz:

- A culpa não foi sua.

4 comentários:

  1. Porra, nao sei porque dizes que nao tens jeito para prosa,ao ler isto, sinto-me num bolso muito peequeno x) Gostei imenso, fico há espera da continuação.

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  2. Que exagero! Estás a ser MUITO modesta e a fugir à verdade, porque tu escreves muito bem.

    Eu gosto de escrever prosa, mas ainda não tenho tantas rotinas como na poesia. No entanto, fico muito contente por teres gostado.

    Obrigado Senhora-Saramago! xD

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  3. Narrativa fluente e cativante com excelentes apontamentos introspectivos!

    Apenas me pergunto quantas pessoas, quantas relações, não se revêm nesta história/confissão...?

    Desoladoramente real!

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  4. Em breve publicarei o primeiro capítulo. Espero continuar a cativar.

    Abraço

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