Páginas

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

chamas e a noite a desabar na praia



hoje não fiz nada de relevante que mereça este gasto de palavras. domingo, fevereiro, vento polar. quando acordei já era tarde – mas tarde para quê?, afinal de contas, enquanto dormia, eu tinha consciência de que hoje o dia seria, maioritariamente, constituído de antimatéria. penso que os sonhos são antimatéria que corroem a realidade, estando eles sempre dependentes da nossa predisposição para que tal se verifique. hoje o dia foi apenas tempo, nem doce, nem amargo, nem nada.
depois do almoço, um cigarro. outro, outro, outro: o tempo. é frequente, em dias como este, ler o poema Tabacaria. devagar, a acompanhar o vazio daquele quarto distante, a reflectir sobre a metafísica implícita nos paralelos das ruas; a observar os corpos que se cruzam nos passeios, as suas consequentes sombras a seguirem-nos; a assistir enquanto eu – ser impossível – retiro meticulosamente a máscara, a pensar que não quero que o espelho me mostre velho; a acenar, com o peso da minha mão a mostrar-se leve, ao Esteves que sai da Tabacaria. ele sorri. o poema acaba ali, mas permaneço nele durante mais algum tempo, contabilizado pelo relógio da sala, defronte para mim, tão longe. penso que nos é permitido descansar no colchão irregular de um poema.
depois, depois do depois, esse momento impreciso, reparei que já não tinha tabaco. curioso. liguei a televisão, tentando abstrair-me desse facto concreto: dois cigarros no maço. não chegam, tal como não chega ligar a televisão e acreditar, esperar, que por alguma razão os meus olhos, os meus pensamentos sejam capturados, como nativos desprovidos da sua natural rebeldia. as notícias falam de fogo em Atenas, as imagens mostram fogo em Atenas. um banco a arder, lojas a arder, jovens protestantes gritando chamas que incendeiam o tempo que corre em Atenas. pensamentos. só tenho dois cigarros. troquei de casaco, peguei nas chaves e em algumas moedas – o euro, ridículo como nunca antes.
o quiosque fica junto à praia, fica junto à possibilidade de olhar o infinito, fica junto a um local onde por vezes me encontro. no carro, senti calma, senti o silêncio a tocar os meus pensamentos dispersos. Atenas fica tão longe daqui. algum tempo volvido até o momento em que desligo o motor, em que saio do carro, em que tranco as portas, em que retiro as moedas do bolso, em que entro no quiosque, em que a luz se acende, em que compro o tabaco – está certo. obrigado! -, em que inverto o meu sentido, em que quase retrocedo todos estes momentos. o céu começava, naquele instante, a espalhar a noite de domingo. o frio necessário a um dia de fevereiro já cá estava. a noite prestes a desabar sobre o mar. ele aceitando, conformado, as trevas, o sono que chegará no momento em que acabar de escrever este texto. mas esse momento ainda não tinha chegado e ainda também não chegou, pois, tal como se pode verificar, ainda existe mais um parágrafo.
regresso a casa. a lareira acesa. longe, Atenas está em chamas. tiro o casaso e retiro, do seu bolso, o maço de tabaco. sento-me no sofá, fumo um cigarro e, enquanto isto, volto a acenar. pareceu-me ter visto o Esteves.

Sem comentários:

Enviar um comentário