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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

rasga, deita fora



há alguns dias que não escrevo nada. as ideias foram passando, desprovidas de palavras. como fotografias, como miragens, como esboços, como ideias livres, antes de serem forjadas. foram algumas as vezes em que, ao longo destes últimos dias, tempo a passar, tentei escrever alguma coisa. mas faltaram as palavras, abundou o branco, sobrou tempo.
e esse tempo foi longo, expandido pelo meu medo, pela minha sensação de inércia. por vezes, tenho medo de que a eternidade exista, contra todas as minhas estimadas probabilidades, e que esta fome de palavras me acabe por queimar, como um incêndio de fogo brando. mas hoje, o sol, generoso, a evaporar as minhas certezas húmidas, as minhas incertezas frias. nos últimos dias choveu, algo perfeitamente compreensível e expectável, estamos em janeiro. se a chuva fosse boa não cairia do céu. penso nisto durante um instante, depois, depois continuo a pensar, a esperar. convenço-me de novo que a eternidade não existe, esta mudança climatérica prova isso mesmo, e, por isso, percebo também que as letras grafadas em Times New Roman, tamanho 12, voltarão a polvilhar o meu pensamento. confesso, sentir-me-ei bem nesse momento. e esse não será nenhum acto divino, esse momento será apenas a minha tomada de posse deste corpo, destas mãos com que agora escrevo este texto. bastará esperar por mim.
este tempo é como a chuva, embora hoje esteja sol, e, repito: se a chuva fosse boa não cairia do céu. eu sei que qualquer agricultor poderá desmentir isto, chamar-me nomes e rasgar, ou queimar, estas palavras. a sua indignação a dizer o meu nome. sentirá vontade de apontar ao meu rosto uma lista com mais de mil utilidades e benefícios da chuva. uma lista, sim, coisa importante e solene. eu poderei ler essa lista, por certo que o farei. eu respeitarei as suas razões, mas manterei a minha opinião. repito: se a chuva fosse boa não cairia do céu. dizem que sou teimoso.
ontem encontrei deus num qualquer lugar, no hipermercado, no talho, no café, numa casa de banho pública, num qualquer lugar. sentimos o embaraço causado por essa casualidade da vida. foi um momento altamente pesado, quase suor. o nosso desconforto manifestou-se através dos nossos pensamentos, mas nunca através dos nossos rostos. acredito que ocorreram terramotos interiores ao nosso corpo, relâmpagos a fazerem-nos tremer de medo, como crianças ingénuas que ignoram as baixas probabilidades de serem atingidas por um raio. cumprimentámo-nos, somos dois seres minimamente bem-educados. aquelas palavras, olá, olá, disseram muito pouco acerca daquilo que somos. corremos até o risco de, neste momento, quem nos lê, achar que somos ou fomos hipócritas. sim, existe essa probabilidade, existem outros milhares de milhões de possibilidades, tantas como pessoas. porque cada pessoa é uma mão distinta, com linhas, marcas e pele diferentes, cada pessoa é individual, excepto claro os deputados de um mesmo partido, excepto claro os padres, excepto claro os agentes imobiliários, excepto claro os banqueiros, excepto claro os hippies, excepto claro os arrumadores, excepto claro quase todos nós. agora que reparo, embora sejamos diferentes, somos todos bastante semelhantes. esqueçam a minha penúltima frase. assim sendo, pelo comportamento de manada, corremos o sério risco de sermos chamados de hipócritas, mas isso é algo que não nos incomoda muito. tu, deus, poderás sempre lançar pragas sobre todos esses, poderás provocar terramotos.
durante o tempo em estivemos um perante o outro houve gaguez, manifestação do nosso embaraço, presente no nosso discurso. o tempo esteve suspenso, anulado. tu falaste primeiro, dei-te essa honra, nunca gostei de iniciar discussões. a sua voz, deves-me um pedido de desculpa!, a minha a reagir quase autónoma, tu também! depois o silêncio a cobrir aquelas palavras, a diluir o nosso rancor. passou tempo e, finalmente, contra todas as probabilidades, sorrimos. nesse momento tivemos a percepção de que poderíamos argumentar, agredir-nos, tentar empatar um jogo em que ambos pensávamos estar a perder, mas nada disso valia a pena. somos dois casos perdidos, mas apesar disso respeitamo-nos.
acredita! no fundo, eu não te responsabilizo totalmente pelo que perdi, bem sei que sempre tive as competências necessárias para o conseguir sozinho. não te culpabilizo totalmente por todas as mortes que te foram associadas ao longo dos tempos, pois tu não tens braços, nem lanças, nem aviões, nem bombas de hidrogénio. tudo o que tens foi imaginado e escrito por nós, por isso nós somos, em última análise os principais responsáveis. as nossas ilusões, os nossos medos, a nossa noção do tempo e consequente desejo da eternidade fizeram-te. escreveu-se tanto sobre ti, mas também não tens culpa disso. não acho que queiras fama, até porque nunca te deixaste fotografar. poderias ser capa de revistas cor-de-rosa se quisesses, poderias dar entrevistas e poderias entrar em reality shows, mas isso nunca sucedeu. penso que nisso estiveste bem.
isto que escrevi agora, não lhe disse a ele, não quero que saiba disto. porque a soberba existe, porque a soberba existe. se algum de vocês, à noite, enquanto reza, lhe contar o que acabei de escrever e, um dia, ele me confrontar com isto, eu negarei. porque a mentira existe, porque a mentira existe. estávamos ainda envoltos em silêncio quando alguém o chamou. disse-me que tinha de ir. apertámos as mãos. tudo de bom!, tudo de bom! e depois, depois, houve tempo a passar novamente.
nada disto sucedeu realmente, e este texto não conta oficialmente, por duas razões que passo a explicar. ao ter imaginado aquele encontro menti-vos, em primeiro lugar, mas a mentira existe, a mentira existe; em segundo lugar, em certa medida, este texto caiu do céu, então, logicamente, e para me manter coerente, não pode ser coisa boa.
rasga, deita fora.
é só continuar a esperar. a eternidade não existe, a eternidade não existe.

 "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras." Friedrich Nietzsche

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