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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

vida no ventre



acolham-na: dizia isto o bilhete que trazia preso na sua trela. encontrei-a dormindo, abrigada sob o meu carro. olhou-me. medo. uma realidade desconhecida. só. abandonaram-na por estar prenha, por não ter o seu ventre solitário de vida. trouxe-a para casa, a minha casa, a sua casa agora. a minha gata: Mia.
quando nascemos, nós pessoas, seres mais tarde razoavelmente conscientes, somos acolhidos por várias mãos repletas de esperanças, que nos depositam, como chips dentro do nosso corpo, padrões a que devemos obedecer. para onde quer que vamos as esperanças dos outros vão connosco, até mesmo quando dormimos e vagueamos em universos paralelos, pintados de cores impossíveis, onde, por vezes, os corpos flutuam e assumem formas estranhas. sentimos o peso dos sonhos de outros, que nunca se assumiram como reais, e, um  dia, os nossos sonhos e esperanças estarão embutidos nas nossas mãos mais velhas que acolherão novos corpos, ainda pequenos.
o abandono. não somos máquinas. o esquecimento. largamos tudo aquilo que não nos serve no mundo, quando por vezes nós somos esse propósito que não serve o mundo, essa palavra abstracta, pois cada um de nós tem uma interpretação própria do seu significado. olho-o. imagino-o. apreendo-o. o céu de tamanho infinito acompanhando as minhas ilações.
acolhe-me. é o que me apetece dizer-te.
a noite. o frio. os seus olhos a reluzirem luz pontilhada de esperança e medo.
a noite. as pessoas dormindo, abrigadas do seu frio, não pensam no mundo cá fora. as estrelas longínquas tapadas pelas nuvens próximas. os nossos corpos eclipsados.
Mia, vem para dentro! estendo os braços. pego-lhe. acolho-a. pouso-a passado uns instantes. envolvo-a em mantas, olho-a antes de me ir deitar, e acredito que ela percebe: afecto. a noite lá fora. o meu sono a chegar. o amanhã virá novamente, como uma criança descalça que ainda não sabe nada e a quem tudo podemos ensinar, como uma gata abondonada e repleta de vida no ventre.
acolhe-me. é o que me apetece dizer-te.

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