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quinta-feira, 3 de março de 2011

A CASA DO VIOLONCELO - CAPÍTULO I - DIFERENTES MANHÃS





Aquele era o dia do meu aniversário. Completava dezoito anos. Para mim era apenas mais um dia, mais uma manhã, que daria lugar a mais uma tarde, que acabaria no início de mais uma noite. Mas naquele dia eu fazia dezoito anos. Toda a rua sabia. É da natureza das coisas toda a rua saber de todos os acontecimentos, de todas as conversas, de todos os silêncios, de tudo e do mínimo nada que sucede em minha casa.E naquele dia toda a rua sabia. Era o dia em que completava dezoito anos.

Hoje a minha mãe não trabalha. É Sábado. Excepcionalmente ficará em casa, colocará o seu melhor sorriso e eu, para não a desiludir, farei o mesmo. Não gosto de ver a minha mãe triste. Gosto de quando ela sorri como antes: passado que não volta. Desde aquele dia, em que ele nos deixou, o sorriso da minha mãe quase desapareceu.. O meu, não o recordo bem. Era ainda muito pequeno para o conseguir recordar.

Depois de tudo, depois de todos estes anos, já não temos sorrisos novos, convincentes. Já não temos. Imitamos no limiar da perfeição aqueles que, sem nenhum motivo, sem nenhuma explicação racional, sem nenhum esforço, sem dias ou horas marcadas, nos saíam quando estávamos todos juntos: felicidade. Passado.

Não sei bem se já estava acordado ou a dormir quando a minha mãe entrou. Trazia um sorriso posto na cara e uma alegria simulada, de forma tão sincera, nos olhos. Hoje eu fazia dezoito anos. Levantei-me. Abraçámo-nos. Momento irreal. Mãe e filho unidos como no início: como sempre. União que não precisa ser mostrada, que não precisa ser explicada.


Tenho uma palavra que não consigo nunca verbalizar,
talvez por natureza minha ou por estranheza ao seu som.

Só sei que me custa dizê-la quando estou contigo,
mãe, nesses momentos em que somos só os dois:
mãe e filho: somos o silêncio, que no fundo tanto diz.

Diz tudo aquilo que as palavras não conseguem,
que as mãos não nos permitem executar
pois somos mãe e filho: somos silêncio no silêncio:

somos amor sem pronunciar.


Naquele momento fomos amor. Amor sem pronunciar. Por momentos sentimo-nos, dissemos tudo o que queríamos dizer. Aquele abraço apertado, as suas mãos que quase me tocaram, as lágrimas que quase chorei, os nossos corpos que quase se encontraram disseram tudo. Disseram amor. As primeiras palavras do dia foram: parabéns João. Depois, depois o silêncio.

Este era apenas mais um aniversário para mim. Desde aquele dia, todos os meus aniversários são iguais. Todos os outros dias do ano não os sei, bem, descrever. Como se descreve o vazio? Não recordo como foram todos os outros dias. Não me lembro de ontem sequer. Sei que hoje é Sábado. Faço anos.

Olho em redor. O meu quarto. A cama feita. O violoncelo ao canto, esquecido. Desde o dia em que ele nos deixou, que o velho violoncelo dorme ali. Já não me lembro quem o pôs no meu quarto. Não sei se está ali todos os dias. Está hoje, no dia do meu aniversário.

O meu pai foi um grande violoncelista. Toda a rua sabe disso. Lembro-me de ser pequeno e ouvi-lo tocar, horas e horas. O tempo não passava. O tempo ficava simplesmente a ouvir o meu pai tocar violoncelo. Aquelas cordas tinham vida e o arco orquestrava-as sob a mão ágil do meu pai. Talvez me tivesse também ensinado a tocar se…se não nos tivesse deixado.




Hoje o meu filho fez dezoito anos. Na sua cara vi felicidade, vi o homem em que se tornou. Meu querido filho. Vi a minha mulher, bela, como se os anos não lhe tivessem passado, sorria também, sorria de verdade. E eu tentava apenas que eles me vissem.

Como eu gostava que eles me vissem. Hoje, na Casa do Violoncelo, houve felicidade. Talvez os vizinhos não tenham ouvido os risos do meu filho, a minha mulher a cantar-lhe os parabéns ou as conversas alegres que tiveram. Mas eu ouvi. Estive com eles.

A Casa do Violoncelo. Era assim que os vizinhos lhe chamavam. Durante os cinco anos em que ali vivi, cedo começou a ser assim chamada. Depois, por alguma razão continuou a ser assim chamada. Talvez os nomes sejam imortais.

Nos primeiros tempos, várias foram as ocasiões em que os vizinhos, principalmente o velho, bom, Alberto, me reclamava do choro do violoncelo já em horas tardias. Enquanto se queixava, sorria. Depois dava-me os parabéns. De todas as vezes eu apenas dizia: desculpe, não volta acontecer. Mas voltava. E as queixas tornavam. E eu dava a mesma desculpa. Até que um dia, por alguma razão, as queixas pararam. Coisas do tempo. Hábito.

Algum tempo depois, eu parti. Morri.

A culpa foi minha. Silêncio. Depois, alguém, alguma voz me diz:
- A culpa não foi sua.




Lembro-me como se fosse hoje. Naquele dia, em que ele nos deixou, o nosso filho completava cinco anos. Antes daquele dia, houveram outros dias que nos levaram até aquele momento.

Éramos felizes, o nosso filho era feliz, o universo era simples e sem falhas. O destino era doce, o tempo era calmo e nós acreditámos que seria sempre assim. Como eu queria que tivesse sido sempre assim. Como eu, nós nos enganámos ao pensar que seria, para sempre, eternamente, assim. Não foi. Naquele dia, o David deixou-nos.

Tínhamos combinado, ontem, que hoje levaríamos o João ao Jardim Zoológico. O nosso filho fazia cinco anos. Tanto eu como o David, concordámos que esse seria um bom plano para deixá-lo feliz.


O meu marido gostava de nos ver felizes. Quando por alguma razão, eu estava mais em baixo, ele era triste também por um segundo. No segundo seguinte, reagia. Dizia-me as palavras que eu precisava ouvir. Nos seus olhos: alegria. Nesses momentos tudo ficava mais fácil.

Tudo era harmonioso, como a música que tocava nas noites, muitas. Noites calmas. Noites alegres. Noites de amor, em que os nossos corpos se encontravam e o mundo se perdia. O tempo parava, só para nós. Os seus lábios tocavam cada ponto do meu corpo. Conheciam-no tão bem. As minhas mãos nas suas costas, âncoras cravadas. Cravadas naquele momento. Os nossos olhos diziam mil coisas. A nossa pele, suada, unida. Amor. Depois a manhã. Sábado.

Hoje o João fazia cinco anos. Acordámos cedo, eu primeiro. O nosso filho já nos esperava ansioso. Os seus olhos enormes, ansiosos.

Naquela manhã estávamos felizes.





A noite foi difícil, atormentada talvez pelas turvas lembranças daquele dia. Aquele dia: esse dia tão distante, mas tão próximo de imaginar. Metade do que lhe recordo talvez tenha sido verdade, a outra metade foi-lhe acrescentada pelo meu arrependimento, pela minha culpa, pela minha vontade de fazer de forma diferente. Então as duas metades juntam-se e formam um novo dia que vou vivendo nesta manhã.

Amanhã moldarei um hoje diferente deste que realmente vivo. Amanhã abrirei o baú da mentira e com ela darei cor: vida: a este hoje desbotado pelo ontem, a esta manhã que se enlaça com a noite.


Ao acordar nesta qualquer manhã
Depois de mais um sono fingido
Eu penso em ti
E nesse momento quase te amo

Quando olho o retrato sumido
Com as lágrimas secas que derramo
Eu toco em ti
E nesse momento quase sou teu

Mas não sou
Não sei de quem sou

Sou do tempo que nada me traz
Sou a lembrança que tu negarás

E quando eu penso que sarou
Afinal ainda arde
Ela queima como absinto
Ela queima como mil sóis

Quando eu penso que acabou
Afinal ainda te sinto
Afinal ainda me dóis

Mas quando eu acordo
Mas quando olho o retrato
Eu penso em ti
Eu toco em ti

E nesse momento não real
Esta dor é recompensa

Nesse momento eu sei que existi


Sei que existi naquele dia. Depois parti. A culpa foi minha.





Lembro-me do dia em que fiz sete anos. O meu pai tinha-nos deixado há pouco tempo. Eu era ainda muito criança, para ser homem. Mas fui.

Eu gostava muito do meu pai. Lembro-me de sorrir com ele. Ríamo-nos muito. O meu pai ficava feliz com a nossa felicidade. Disso tenho a certeza. Pouco antes de nos deixar, o meu pai havia-me prometido que me ensinaria, um dia, a tocar violoncelo. Ele dizia que eu ainda não tinha idade para isso. Acho que no fundo ele nunca quis que eu tocasse naquele violoncelo.

Este foi o primeiro aniversário sem o meu pai. Ele deixou-nos no dia em que eu fiz cinco anos. No ano passado não fiz anos. A minha mãe não existia, apenas o seu choro. Creio que nunca completei seis anos. É como se o tempo tivesse vacilado naquele ano. É como se o mundo tivesse parado. Esse ano não existiu, não passou, aqui, na Casa do Violoncelo.

Hoje foi então a primeira vez que fiz anos, depois daquele dia. A minha mãe veio ter comigo de manhã. Não sei se estava já acordado quando ela entrou. Abraçámo-nos. Durante o resto do dia, olhamos impotentes fotografias do meu pai, jovem ainda. Durante esses intervalos a minha mãe contava histórias sobre o meu pai. Em todas elas, ele sorria. Em todas elas, a voz da minha mãe era invadida por soluços: saudade. Depois a sua voz perdia-se. Chorava.

Nesse dia fiz sete anos.




Naquela manhã estávamos felizes. O nosso filho completava cinco anos. O tempo era nosso.

Tudo aquilo de que vivo é passado
O que ouço ou que te digo
Já não é verdade agora pois passou

A velocidade a que a luz me mostra
A tua face que eu supus que fosse igual
Afinal também mudou

Tudo é tempo
Parece lento
Mas tudo leva

Faz sol no Verão
E neva em Dezembro

Eu procuro a tua mão
Para a minha não cair

O momento não é nosso
Ele deixa de existir
Quando nostálgico eu o tento captar

Sinto a sua falta
E não sou mais do que tempo a passar
Um pouco mais que o necessário

O meu grito vai no universo imaginário
Viajando no tempo que pára agora

A estrela é distante
E o tempo também chora


Por vezes penso que o tempo também chorou. Por vezes penso que não foi vontade sua, aquela que levou o meu marido naquele dia.

Eram nove da manhã quando saímos de casa. Saímos todos. Felizes. Nem todos voltaríamos no final daquele dia. Mas saímos, porque não sabíamos.

Durante a viagem, eu, ainda com sono ia calada. Pensava em coisas pouco importantes. O João, atrás, observava curioso a paisagem. Perguntava constantemente:
– Ainda falta muito, pai? - o David respondia-lhe sempre. Depois sorria. E o nosso filho sorria.

Era um dia de Novembro mas estava sol. Lembro-me bem. Tive de ralhar, fazer a minha voz mais grave, para convencer o João a trazer um casaco. Ele não queria. Depois o pai disse-lhe:
- É melhor! Porque senão não te deixam entrar para veres os leões. - então ele, de pronto, foi buscar o casaco que a minha sogra lhe havia oferecido no Natal passado. O David olhou para mim, cúmplice, piscou o olho e sorriu.

Faltava pouco para chegarmos. Já havia algum tempo que o meu marido começara a falar. Fazia-me perguntas, fazia planos para aquela manhã, para aquela tarde, para nós. O tempo era nosso e ele tentava encolhê-lo. Falava.


CAPÍTULOS ANTERIORES:

A CASA DO VIOLONCELO - PRÓLOGO : http://meraspalavrasammc.blogspot.com/2011/02/casa-do-violoncelo-prologo.html

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